05/10/2022
Semana institucional elevou debate sobre discriminação, preconceito, precarização e tecnologia
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A décima Semana Institucional da Magistratura do Tribunal Regional do Trabalho da 9a Região (TRT-PR) concentrou alguns dos temas mais atuais do mundo do trabalho e da Justiça do Trabalho, em debates de alto nível, no Plenário Pedro Ribeiro Tavares, na sede do Tribunal, em Curitiba. Durante uma semana, todos os magistrados da instituição se dedicaram ao estudo sintonizado com os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, da Organização das Nações Unidas.
Jurisprudência trabalhista no combate à discriminação
A jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho relativa ao combate à discriminação foi o tema da palestra proferida pelo ministro Amaury Rodrigues Pinto Junior no encerramento da Semana Institucional da Magistratura.
Na mesa de encerramento, ao lado do ministro Amaury Rodrigues, estiveram a presidenta do Tribunal Regional do Trabalho do Paraná, desembargadora Ana Carolina Zaina, e o diretor da Escola Judicial do TRT-PR, o desembargador Aramis Souza Silveira.
A presidenta Ana Zaina enalteceu a educação como um alto valor na formação dos magistrados no âmbito do TRT-PR. “Celebramos hoje o encerramento da 10ª Semana Institucional da Magistratura, onde todos nos reunimos para prosseguir estudando, porque cultuamos a educação como um processo permanente”, declarou.
A partir da Súmula 443 do Tribunal Superior do Trabalho (TST), o ministro apresentou casos em que o conceito de discriminação é ampliado para além do constrangimento direto e explícito. No entendimento mais moderno daquela corte de justiça, o estigma não é apenas a marca; é uma situação em que o trabalhador não pode desenvolver sua atividade da mesma forma que antes de desenvolver uma doença ou condição física ou mental.
“Para que haja o reconhecimento da discriminação, o importante não é a doença em si, mas o foco em que o TST coloca estas questões. No momento de maior fragilidade do ser humano, a pessoa é afastada de sua atividade, sofrendo ainda um revés econômico. O que importa aqui é o momento de fragilização do ser humano e o respeito que ele merece”, pontuou.
Em relação às pessoas com deficiência, o ministro Amaury Rodrigues destacou que a adaptação deve ir além do posto de trabalho, alcançando um deslocamento acessível ao local de trabalho. "O acesso não é um favor, gesto piedoso ou caridade, mas cumprimento da Constituição Federal", comentou.
Em seu agradecimento aos magistrados do TRT-PR, o ministro repassou a orientação que ele mesmo recebeu quando se tornou juiz substituto, no início de sua carreira da magistratura. "O juiz não deve se sentir em um pedestal, pois é um servidor público. Deve servir à população. Devemos exercer a empatia em cada caso”, afirmou.
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Cognição e preconceito
Pensamentos automáticos, pré-julgamentos e associações pré-concebidas de ideias são um fenômeno comum a todos os seres humanos e não se confundem com o preconceito explícito, como o racismo. No entanto, ter consciência destes processos mentais implícitos permite que magistrados tenham um julgamento livre de vieses e tendências pessoais.
Esta foi a tese apresentada pelo juiz federal George Malmerstein Lima durante a palestra “Preconceito Implícito”, que antecedeu a participação do ministro do TST Amaury Rodrigues.
“A criação de preconceitos vem por meio de pensamentos automáticos. Por exemplo, a cor da pele. No geral, a pele mais escura cria associações relativas à força física. Quando falamos de altura, as pessoas mais altas são percebidas mais líderes do que as pessoas mais baixas”, exemplificou.
Em relação à atividade jurisdicional, o magistrado do Tribunal Regional Federal da 5ª Região destacou o impacto do gênero na percepção sobre a magistratura. “Juízes e juízas que conduzem audiências de forma rigorosa são percebidos de forma distinta. Ele geralmente é considerado firme. Já a juíza é louca, o que mostra um preconceito com a mulher na posição de autoridade”, exemplifica.
O juiz Malmerstein concluiu afirmando que preconceito implícito é uma tendência, não uma certeza. “Não se observa o viés jamais somente a partir de um caso. É preciso uma massa de chances para se observar uma tendência. Uma moeda não pode ser considerada viciada quando se joga cara ou coroa somente uma vez, mas em umas 10 mil vezes em que cai 6 mil vezes um dos lados”, finalizou.
Quando empregabilidade e empreendedorismo constituem vilipêndio
O sociólogo do trabalho Ricardo Luiz Coltro Antunes debateu com a desembargadora Ilse Marcelina Bernardi Lora a precarização do trabalho no paradigma da “gig economy”, a chamada “economia dos bicos”, cenário ideológico em que o trabalho desregulamentado, sem proteção jurídica, é descrito como empreendedorismo. "Para o Judiciário do Trabalho, o entendimento das condições concretas, históricas que vêm ocorrendo são vitais para uma decisão judicial”, disse o sociólogo, que contextualizou o fenômeno da “uberização” como consequência presente da crise do capitalismo iniciada em 1973, com a crise mundial do petróleo.
"A crise de 1973 mudou gradativamente o padrão de produção taylorista e fordista. Ela é profunda, estrutural e se agudiza em 2008, 2009. Nós vivemos uma crise profunda do nosso modo de vida. O modo como o capitalismo funcionava, de produção em série, produção de massa e consumo de massa, entrou num processo de crise profunda, no cenário de superprodução e desemprego, segunda consequência trágica de 1973. De lá para cá, entramos em processo de desemprego estrutural que não tem mais alternativa. Não é mais possível pensar em uma sociedade de pleno emprego. Como era crise do capitalismo, paralelamente ao desemprego a tecnologia começou a se desenvolver celeremente, porque você precisava compensar a perda de lucro. É nesse momento que o computador entra no mundo da produção. A cada dia, alguns milhares de inventos eram feitos, com consequências sociais profundas. A hegemonia ideopolítica foi neoliberal e a condução desse neoliberalismo tem condução corpórea dada pelo capital financeiro. E como é que o capital financeiro entende o trabalho? Como custo. Para reduzir o custo, corta o trabalho, simples assim”, resumiu o sociólogo.
A gig economy, concluiu o palestrante, "nasce como forma de utilização dessa força sobrante de trabalho, que necessitava de trabalhos de qualquer tipo, incluindo trabalhos parciais, para sobreviver. É uma junção de força sobrante, alta tecnologia, disponibilidade para o trabalho e trabalhos parciais”.
De repente, disse ele, “essas empresas de plataforma explodem. O processo começa no centro do capitalismo, onde o desemprego já era muito profundo. Em dado momento, todo trabalho passa a ser mediado por uma máquina digital. Um celular, tablete, computador... E você passa a ter o desenvolvimento de uma infraestrutura que cria o mundo informacional digital. A explosão da máquina digital é similar à explosão da máquina industrial no século XVIII e XIX. Nenhum trabalho mais pode ser feito sem um artefato digital. Os economistas da ordem, do capital financeiro, que ganham em diamantes para falar bem do capital financeiro, dizem que todo trabalho agora será digital”. Mas, ressalva o professor, "o trabalho dos tablets , smart phones e assemelhados não poderia sequer existir sem interação com as atividades humanas, inclusive as mais rudimentares, como a extração nas minas. Sem a extração de minérios não há um celular. Qual e a ponta desta maravilha? A ponta do celular avançado é a extração mineral, em condições que a China, América Latina e África do Sul nos mostram. Não há celulares, algoritmos, satélites, big data, internet das coisas, nada no chamado mundo digital e virtual, que não dependa do labor, do trabalho explorado e intensificado˜.
"Há uma imbricação indissolúvel entre as atividades ditas intelectuais e aquelas ditas manuais. Aquele que desenha o logotipo de um celular desses, aquele trabalho refinado do criador que fez o desenho de uma dessas empresas, convive com a última trabalhadora, na Coréia, no Japão ou na China, montando o último chip desse celular.˜
A palavra espetacular
Ricardo Luiz Coltro Antunes construiu os argumentos para concluir com a crítica a dois termos constantes nos discursos atuais sobre o Trabalho: empregabilidade e empreendedorismo.
"Empregabilidade é uma invenção”, disse ele. “Você tem que se qualificar ou está fora, o que é uma mentira. Se uma profissão se extingue, e eu fiquei dez anos me qualificando, como vou me desqualificar e requalificar? Eu tenho que pagar para fazer isso.˜
Mas a “palavra espetacular”, finalizou, é empreendedorismo. “A classe burguesa é empreendedora”, definiu, citando Smith e Schumpeter, mas “chamar um trabalhador que até três anos atrás era motoboy, na precariedade, na informalidade, no seguro desemprego, fazendo bico, de empreendedor? Ou uma doméstica assalariada que foi mandada embora porque seu patrão não quer cumprir o direito do trabalho, de empreendedora, é um vilipêndio ao léxico”.
Igualdade de gênero, quinto ODS
A professora Melina Girardi Fachin, especialista em direitos humanos e igualdade de gênero, proferiu a palestra “Controle de Convencionalidade e Proteção dos Direitos das Mulheres”. A palestrante abordou, entre outros tópicos, o preconceito com a ideia do feminismo. “É um movimento plural, múltiplo e que reflete justamente a pluralidade e a multiplicidade do que é ser mulher. Ser mulher não é algo único, temos muitos recortes que se somam, inclusive em condições de maior ou menor vulnerabilidade, as chamadas interseccionalidades, que trabalham justamente com essa ideia de que nem todas as mulheres estão na mesma condição de desigualdade. Existem marcadores que tornam as mulheres mais ou menos vulneráveis”, declarou.
A outra palestrante foi a juíza Bárbara de Moraes Ribeiro Soares Ferrito (TRT-RJ), que falou sobre a necessidade de ler o Protocolo Interseccional de Gênero e Raça do CNJ, um documento que objetiva orientar magistrados para que seus julgados realizem o direito à igualdade e à não discriminação de todas as pessoas. “É muito importante para quem está na área do Direito. Costumamos falar sobre o Direito para combater desigualdades e discriminação, que fará justiça social. Mas o Direito tem, também, uma outra face, uma ambivalência, podendo atuar como instituidor, inibidor e promotor”, afirmou a magistrada.
A juíza abordou, ainda, mercado de trabalho e racismo estrutural. “Vemos uma pessoa preta em um trabalho subalterno. A partir da ideia da meritocracia, pensamos: “ela não estudou, não fez por merecer. E isso vai impedindo que reflitamos sobre as condições sociais daquela trabalhadora e pensemos e nos indaguemos: por que ela ‘está ali e você está aqui?’”.
Na sequência, o tema ganhou as reflexões das juízas do TRT-PR Sandra Mara Flügel Assad, Ana Paula Sefrin Saladini e Vanessa Karam de Chueiri Sanches. Elas apresentaram casos fictícios de processos em que poderiam ser aplicadas as orientações do protocolo.
“Falar em gênero não significa mulheres protegendo mulheres. Significa questionar qual papel nós estamos desempenhando e qual papel que a sociedade exige que desempenhemos”, ressaltou a juíza Sandra Mara Flügel Assad, frisando que os magistrados, em seus julgamentos, “têm o dever de olhar para situações e verificar se ali não existem estereótipos de gênero”.
A juíza Ana Paula Sefrin Salafini declarou que o protocolo não é especificamente para as mulheres. “É uma análise em perspectiva: colocar-se na perspectiva de quem está em determinada situação e momento”. A magistrada apresentou um caso envolvendo amamentação. “Só a mulher que é mãe pode dizer o quanto a amamentação é importante e tem um significado psicológico para ela e para a criança. Por isso, peço que todos os homens, quando tiverem que julgar uma questão envolvendo a amamentação, pensem nisso, conversem com mães que não tiveram a condição de amamentar. Vocês verão que é uma frustração que durará a vida toda”.
A juíza Vanessa Karam de Chueri Sanches, analisando os casos fictícios, destacou: “Temos que observar quem é a parte vulnerável na relação de trabalho e saber qual é o olhar que temos sobre essa pessoa para chegarmos a uma resposta mais igualitária, mais justa. E, ainda que o protocolo sistematize tudo isso, nosso ordenamento jurídico já nos apresenta essas respostas”, enfatizou.
No encerramento das atividades, as três juízas lançaram oficialmente o livro "Direito, Gênero e Raça - Um debate necessário - Reflexões interdisciplinares" (Ed. Thoth). A obra, organizada pelas magistradas, contém 18 artigos escritos por estudiosos do tema. O livro tem o apoio da Escola Judicial do TRT-PR.
Discriminação & Inteligência Artificial
O procurador do trabalho (MPT-RJ) e professor Rodrigo de Lacerda Carelli, especialista em sociologia do Direito, e a professora Nuria Lópes Cabaleiro Suárez, especialista em filosofia do Direito, falaram sobre preconceito e discriminação no universo da Inteligência Artificial.
Os palestrantes discorreram sobre os algoritmos utilizados na internet e a falsa ideia de que a tecnologia é neutra, pura matemática. Nos algoritmos, estão desenhados os valores de quem os elaborou, indicando que essa tecnologia conterá os preconceitos de seus criadores, explicaram. Por isso, a utilização dos algoritmos nas relações de trabalho pode resultar em discriminação.
Muitas empresas já realizam o recrutamento de candidatos para vagas de emprego por meio de algoritmos, “uma combinação que traça o perfil do candidato, para dar o match com a vaga. Quais são os valores embutidos nas decisões dos algoritmos? Será que não podemos fazer uma decisão preconceituosa?”, alertou a professora Nuria Lópes Cabaleiro Suárez, que apresentou diversos casos de uso dessa tecnologia que resultaram em discriminação racial e de gênero.
Os palestrantes falaram sobre a importância de auditorias - a revisão humana - em algoritmos de empresas, a fim de detectar decisões enviesadas. Algoritmo “não é um segredo da empresa”, frisou o procurador do trabalho Rodrigo de Lacerda Carelli, uma vez que são instrumentos que funcionam para tomar decisões em um contrato de trabalho. “Não pode haver cláusulas contratuais secretas”, enfatizou o palestrante (PM, GB, GN).
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